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18 de Abril de 2024

Direito é ciência?

há 5 anos

Alexandre Kenji Tsuchiya

O Direito é uma ciência? É uma indagação simples que pede profundas considerações epistemológicas e ontológicas. Apesar de o Direito não ter nenhuma similaridade aparente com a física, química ou biologia, ambos já foram objetos de indagações filosóficas, posicionando ambos de diversas maneiras. No cerne do questionamento está contido uma questão ontológica de difícil superação, pois é necessário entender e definir o que é ciência e o que é direito a fim de demarcar se são diferentes ou equivalentes. Neste ensaio, através de referências de trabalhos de filósofos e cientistas, busca-se chegar numa definição adequada desse questionamento. Primeiramente, serão destacadas algumas posições sobre questões filosóficas sobre o que é ciência e o que é realidade. Posteriormente, será destacado algumas posições filosóficas sobre o Direito.

Quanto a uma definição ontológica sobre o que é a ciência, é possível levantar duas posições filosóficas dominantes e antagônicas: a do Popper e a do Kuhn. Popper teve uma grande preocupação sobre o problema da demarcação. Ou seja, Popper procurou evidenciar alguma forma de separar objetivamente o que é ciência e o que é uma especulação metafísica (POPPER, 2008, p.43). Nesse sentido, Popper rejeita a noção de que enunciados universais poderiam ser induzidos pela experiência, defendendo contudo que tais enunciados são derivados por intuição, e a forma de demarcar quais teorias seriam científicas seria pelo critério da falseabilidade (2008, p.32). Ou seja, Popper só reconhece algo como científico se aquilo for “passível de comprovação pela experiência” (2008, p.42). Nessa perspectiva, seria difícil de encontrar alguma equivalência entre a ciência e o direito, já que, qualquer tipo de realidade jurídica pode ser alterado por uma decisão judicial diversa, por uma mudança de ordenamento ou pela mudança do tempo. Uma tese verdadeira para um tribunal pode ter resultados radicalmente diferentes de um outro. Como o direito reflete as necessidades regionais, do tempo e da cultura da sociedade, não há, em princípio, algum tipo de verdade que se sustente ao longo do tempo. A falseabilidade, no caso do direito, vem em conjunto com a certeza de que ela será falseada.

Em sentido oposto, Thomas Kuhn contrariou o critério de falseabilidade de Popper. Para Kuhn, não há um critério objetivo do que é ciência. Lakatos resume essa ideia de Kuhn:

“anomalias e inconsciências sempre abundam na ciência, mas nos períodos “normais” o paradigma dominante assegura um padrão de crescimento que é eventualmente derrubado por uma “crise”. Não há uma causa particular racional para o aparecimento de uma “crise” kuhniana. “Crise” é um conceito psicológico, é um pânico contagioso. Então, um novo “paradigma” emerge, incomensurável com o seu predecessor.”(LAKATOS, 1989, p.1)

Ou seja, para Kuhn, a ciência é psicológica, e a verdade da ciência é definida por motivos irracionais, por “pânico contagioso”. Kuhn teria entendido, além disso, que não há acúmulo de conhecimento, apenas substituição de paradigmas, sendo que esses paradigmas não conseguem se comunicar um com outro (KUHN, 1970, p.137). Nessa perspectiva, o direito pode ser inserido dentro da ciência, pois pode se dizer que uma posição jurídica é válida enquanto uma ideologia dominante falar que é, e pode se tornar inválida e incomensurável quando essa posição da sociedade alterar. Não existiria nenhum critério de demarcação objetiva que diferencie o direito e a ciência. Um exemplo é a escravidão, hoje considerada como um desrespeito capital aos direitos humanos, mas antes considerada como uma parte cotidiana dos meios de produção. As ciência, assim como o direito, admite, portanto, todas essas possibilidades de alteração de paradigmas (ou verdades) conforme o que dita a sociedade.

Contudo, conforme afirma Hacking, Lakatos critica a ideia de Kuhn, pois reduz todo o conhecimento científico no mundo psicológico, excluindo valores como a verdade, objetividade e racionalismo (HACKING, 1983, p.112). Lakatos desenvolve um conceito que a ciência possui algo denominado como história interna. A história interna demarca o próprio campo científico, que, como um organismo vivo, evolui e acumula conhecimento, independente de quaisquer influências externas. É nesse contexto que é possível avaliar se um campo de conhecimento é progressivo ou degenerativo (1983, p.117-123). Percebe-se que a perspectiva de Lakatos distancia o direito de ciência, pois o direito é um reflexo dos valores morais e éticos da sociedade. O direito não se desenvolve de maneira autônoma com os fatores externos, mas se molda de acordo com ele, portanto incompatível com a perspectiva de história interna de Lakatos.

Convém também apontar dois movimentos filosóficos. Primeiramente, o positivismo. O positivismo é uma tradição filosófica anti-realista, que prega como princípio que só é possível encontrar a realidade quando ela for observável. Hacking explica que o positivismo é caracterizado por seis ideias chaves: ênfase na verificação, ou seja, um proposta deve ter sua veracidade testada; pró-observação, ou seja, o que é sensível por nós é a melhor fundamentação do conhecimento, excluindo a matemática; anti-causa, ou seja, não existe causalidade, mas apenas uma consistência de encadeamento de eventos; desvalorização das justificações, ou seja, justificações não aprofundam o conhecimento, apenas podem ajudar a organizar o fenômeno; negação aos entes teóricos, ou seja, negar que alguma coisa existe se essa alguma coisa supostamente causa algum efeito; e, por fim, antimetafísico (1983, p.41). Pode se observar uma certa semelhança com Popper, mas Hacking nega essa equivalência, pois Popper acredita na justificação e não nega a metafísica, pois essas seriam uma forma genuína esses passos para um método científico. De toda forma, é difícil de argumentar que o positivismo tenha uma perspectiva de que direito seja uma ciência, pois o direito contém denso conteúdo metafísico, com conceitos que não se prendem ao que é observável ou verificável. Ao invés disso, o que foi tentado é uma aproximação dos conceitos positivistas para o direito, mas que ainda assim, não faça o direito a equivaler com a ciência.

Também é importante destacar a perspectiva de acúmulo do conhecimento no positivismo e seus contrapontos. Basicamente, os positivistas entendem que a ciência tem tido sucesso pois ela está convergindo a uma verdade, evidenciando um aspecto de acúmulo e evolução do conhecimento. Quanto a esse ponto Popper e Lakatos também concordam. Hacking destaca algumas objeções a essa visão, pois entende que o que há é o mero acúmulo de conhecimento, que não implica numa convergência dela. Kuhn também critica, pois para ele um aparente acúmulo pode ser verdade apenas do que ele chama de ciência normal, mas com revoluções os conhecimentos anteriores são descartados. O que pode existir é uma ilusão de acúmulo através de manipulações nos livros-textos. Por fim, Hacking destaca que enquanto é verdade que os fenômenos, as tecnologias, os métodos e o raciocínio científico se acumulam, nenhum desses fatos implicam que a teoria seja verdadeira. Quanto a esse ponto, pode se dizer que o direito pode concordar tanto com a perspectiva de acúmulo de conhecimento, conforme Popper, Lakatos e os positivistas, como as de mudanças de paradigmas conforme enuncia Kuhn. O pragmatismo, por sua vez, é um movimento (também anti-realista) que prega que a realidade é aquilo que é aceito pela comunidade de uma forma estável. O seu maior expoente é Sanders Peirce e William James. Nesse sentido, até uma igreja é uma boa forma de estabelecer uma verdade, segundo Peirce. Esse pensamento, contudo, também se separam em duas ramificações. Uma acredita que existe algum ponto final desse processo de aceitação, enquanto que o outro entende que não há uma realidade externa que o processo possa desaguar. Peirce ainda defende que o experimento tem vida própria, independente dos caprichos de quem propõe a teoria (1983, p.51-64). Percebe-se que há uma certa semelhança com o pensamento de Kuhn, e portanto também é compatível com a ideia de o direito se enquadrar como ciência.

Quanto ao direito, tradicionalmente, é entendido como a própria norma, no sentido objetivo, ou entender como a propriedade de ter prerrogativa sobre algo, no sentido subjetivo. Contudo, o significado de interesse seria a de ser um ramo das ciências sociais cujo o objeto de estudo é o sistema de normas. Quanto ao questionamento sobre a ontologia do direito, destacam-se Kant e Kelsen.

Kant procurou entender o Direito como uma forma de proteger a liberdade de outrem, que ainda não possua a autonomia, ou seja o direito seria “a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem de acordo com uma lei universal de liberdade” (KANT, 2003, p. 407). Para Kant, a liberdade é fundada na autonomia, e a autonomia advém da moral. Dessa forma, para Kant, a função do direito é impedir ou prevenir que a autonomia dos outros sejam prejudicados. Contudo, Kant não conseguiu obter uma resposta sobre a natureza ontológica da liberdade, ou seja, a teoria da liberdade. Kant chega à conclusão de que é impossível determinar se a liberdade é mecanicista, ou seja, não há uma autonomia no verdadeiro sentido da palavra; ou se ela é indeterminada, portanto há uma autonomia inerente nos seres humanos. Dessa maneira, Kant entende que não é possível perceber a autonomia, a moral, ou seja, a justiça ou direito na perspectiva da razão pura, mas somente através da razão prática. Portanto, percebe-se que para Kant, a ciência natural ou matemática não compartilham essa natureza com o direito, pois aqueles são conceitos dentro da razão pura.

Kelsen, por um outro lado, procurou distanciar de alguns elementos subjetivos ou não falseáveis do direito, propondo assim a ciência do direito. O objeto de estudo da ciência do direito é a norma, não importando algumas questões morais, tais como se a norma é justa ou como o juiz decide uma norma. Para Kelsen, enquanto que a ciência natural (ou sociais) o objeto de estudo é o ser, os fenômenos, o objeto da ciência jurídica é o dever-ser, a norma. Ao invés de trazer a causalidade como algo que liga a causa e efeito, Kelsen defende que na ciência do direito o que liga o pressuposto é a consequência é a imputação. A ciência para Kelsen tem natureza descritiva, ou seja, de descrever a norma, a relação entre as diversas normas e a lógica delas (KELSEN, 2003, p. 81-90) . Cabe notar que Kelsen tem a ideia de extrair algo científico dentro do campo de estudo jurídico, ou seja, a ciência jurídica é diferente do próprio direito. Também vale destacar que Kelsen entende que, enquanto que imputação pode ser alterado de acordo com a lei, a causalidade não sofre nenhum tipo de interferência como essa.

Portanto, conquanto se observa uma grande quantidade de discussão sobre o que seria a ciência e o que seria o direito, percebe-se, em última análise, que poucas posições sustentam o direito como ciência. Aqueles que sustentam conceitos que possam aproximar direito com a ciência tendem a relativizar tanto que chega ao ponto de qualquer coisa poder ser ciência, situação que seria deduzível se considerar as posições de Kuhn, dos pragmáticos e dos correlacionistas. Essas definições, portanto, não possuem função para o desenvolvimento do conhecimento ou da ciência de maneira útil e significativo. Kelsen buscou criar uma ciência dentro do direito, mas para tanto teve que extrair tudo aquilo que tenha cunho valorativo, incluindo a decisão judiciária. Apesar de ser inegavelmente uma perspectiva útil para o estudo e o entendimento do direito, o objeto de estudo se torna tão recortado que se torna algo que dificilmente seria identificável como direito na concepção comum. Isso não significa, obviamente, que o direito não tenha uma lógica previsível, que não mereça estudo ou que um estudo sistematizado do direito não seja útil. Contudo, a dinâmica que ele evolui e a forma como ela é estudada é fundamentalmente diferente com as outras disciplinas tradicionalmente conhecidas como ciência. Uma outra forma de dizer é que, se o direito fosse como a ciência, que se desenvolve independente das pressões externas e por elas não ser influenciado, ele não seria algo útil para a sociedade.

BIBLIOGRAFIA:

KUHN, Thomas. A estrutura das Revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, [1998]

POPPER, Karl R. A lógica da Pesquisa Científica. Trad. Leonidas Hegenberg e Octanny Siveira da Mota. São Paulo: Editora Cultrix, 2008

LAKATOS, Imre. ‘The Popperian versus the Kuhnian Research Programme’ in. The methodology of scientific research programmes: Philosophical Papers, vol. 1. Cambridge, UK: University Press, 1989, pp. 90-93. Tradução para fins acadêmicos: Otávio Souza e Rocha Dias Maciel

HACKING, Ian. Representing and Intervening. Cambridge, Cambridge University Press, 1983

KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2003.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Batista Machado. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003.

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